segunda-feira, 11 de julho de 2011

Com Darma e Com Afeto – parte V

Durante um tempo, porque minhas conexões são afetivas, quis ver o Lama como um amigo, com as expectativas que esta relação traz, agora venho desenvolvendo um afeto diferente, afeto pelo meu professor. Sim, o Lama não é meu amigo, pelo menos “amigo” segundo as expectativas mundanas, ele, por compaixão, renuncia a me “agradar” para me ter como amigo, fez Voto de Bodisatva (de forma simples, atingir a mente da iluminação, bodichitta, para ajudar todos os seres), fui acolhido como seu aluno, ele escolheu ser mestre, e eu lhe agradeço por isto, pela generosidade.
Sim, generosidade, uma vez perguntei ao Lama, na sanga, durante uma situação que parecia ultrapassar os limites da paciência, perguntei como quem confirma, referindo-me à sua disposição naquela (aparente) confusão, administrando egos, inclusive o meu (para destruí-los – risos), repetindo e repetindo os ensinamentos, n vezes, e sem perder a energia, o lung: “Lama, é preciso muita compaixão, não é?”, ao que ele respondeu, afirmativamente, com um gesto de cabeça e um sorriso. Paciência! Na verdade, paciência, ensina o Lama, respondendo-me outra pergunta, é a condição original, a impaciência é que é uma construção. E generosidade? Também natural, assim, ver generosidade, como algo construído, na disposição do Lama é minha visão humana, mas é a que tenho, ainda, qualquer coisa diferente disto passa por mim como um brilho, e fugaz, apenas. Esse brilho, vejo, de alguma forma vejo, ver como sentir, no Lama, com uma estabilidade admirável, admiração como construção humana, mas, principalmente, motivadora, ainda que desafiante, muito desafiante, e, talvez por isto, inquietante, mais ainda, desestruturante, ainda mais ainda (risos), insuportável. Inabalável! Inabalável e um brilho cheio de humor, recentemente, assistindo ao meu professor, num ensinamento transmitido on line, vi-o brincar com essa inabalabilidade, quando “ensinou” que, se pegue numa situação difícil, negue, porque não foi você, diga que aquilo, aquela condição que disse, fez, isso e aquilo não é você, negue e continue negando, o Lama repetindo e rindo. Foi uma brincadeira, mas foi um ensinamento precioso.       
Mas vejo também o humano no meu Lama, ainda que, talvez, muito seja projeção. Talvez, para o humano em Alfredo Aveline, seguir mestre, e de tantos, seja um caminho, de certa forma, nas condições do mundo, solitário. Isso é só uma reflexão, e pode ser só uma projeção, como iniciei dizendo, mas vou seguir um pouco mais nessa relatividade. Minha reflexão começa no reconhecimento da nossa solitude, de todos, nascemos sozinhos, morremos sozinhos, iluminamo-nos sozinhos, ou seja, permanecer no samsara, na roda da vida, através do nascimento, morte, nascimento, ou libertar-se deste ciclo de nascimentos e mortes, de duka, felicidade e sofrimento inseparáveis, são experiências e realizações, do ponto de vista humano, solitárias e ponto.
Para seguir refletindo sobre a solitude do mestre, lanço mão da parábola de Schopenhauer, a dos porcos espinhos, que, no frio (subjetivo) recorrem ao calor da companhia (dos outros), afastam-se quando os espinhos (do ego) espetam uns contra os outros, para retornarem, ainda que se afastem novamente, retornem... ou, dizendo por Fernando Pessoa, “a sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis”, ou seja, na condição humana, somos entes individuais, concorrentes, na defensiva ou na ofensiva, mas também somos entes sociais, gregários, onde precisamo-nos semelhantes e por isto devemos ser úteis e agradáveis. Agradáveis! Mestre Tokuda não estava querendo ser agradável quando, com firmeza, sem entremeios, sem explicações, olhou-me nos olhos e disse: “Silvio, não assobiar!”, conto a história mais completa: o Mosteiro Serra dos Pirineus, quando participei do seshin aqui já referido, ainda não estava completo em suas instalações, assim, acampamos todos, eu, sem o perceber, fui um dos últimos a chegar, bem ao lado da barraca onde se instalou o Mestre, encontrávamo-nos, por isto, nas idas e vindas, numa destas ouvi o que ouvi. E parei de assobiar, sem questionamento algum, fez sentido para mim, em mim, entendi, sem nenhuma palavra mais. No mesmo seshin, assentando umas pedras, para fazer caminho no chão, durante o samu (trabalho comunitário), ouvi também de um praticante observação sobre meu assobio, mas este era “terapeuta”, e sua voz vinha carregada de uma “moral explicativa”, não foi, o que observou, por motivação comum, útil e muito menos agradável (risos). Vindo de Tokuda San, a princípio não pareceu agradável, mas, por útil, tornou-se, mais ainda, por compassivo, para me ajudar, por esta motivação.  Às vezes meu Lama trata-me de uma forma que parece afastar-me, ou eu arbitro afastar-me, mas sigo com ele, que segue meu professor, porque em algum momento consigo distinguir sua motivação, compassiva, de me ajudar, útil (com sabedoria, portanto), daquela comum.
Motivação! Motivação faz toda diferença, foi meu primeiro ensinamento no budismo, na Índia, em 1994, da sabedoria do Geshe Lakdor, a quem ainda vou me referir, depois da lucidez do meu Lama, quando deixou de ser apenas compreensão intelectual e começou a se tornar visão. Mas enquanto não acontece esse momento, que pode demorar ou até não chegar numa vida, em mais de uma vida, do aluno perceber a motivação do Lama, ele segue com isto, (aparentemente) “desagradável” e, consequentemente, “inútil”, desatendendo as condições da sociabilidade, só, portanto, na situação. Bom, mas já ouvi de meu Lama, num episódio em Recife, sobre um comentário a respeito de alguém que, numa oportunidade de ouvi-lo, por uma brincadeira sua, desagradou-se, e por isto afastou-se, que “O importante é manter a conexão”, ou seja, o Lama suporta(!), o que poderia ser solidão humana, de um jeito ou de outro, ainda que pela rejeição, mantida a conexão, um dia...    
Por fim, sobre o caminho solitário do mestre, não é humanamente fácil mesmo carregar a espada afiada de Manjushri (Deidade da Coragem e da Sabedoria), a que corta as fixações, a ignorância. Há uns anos, em Fortaleza, servindo à estada do Lama na cidade, transportando-o no meu carro, fui “obrigado” a ouvi-lo contando piada de loira (risos), eu, todo sofisticado em minha cultura, politicamente correto, falso-moralista até, foi cortante! E mais, no mesmo trajeto, ouvir sua filha, à época uma menina, quase entrando na puberdade, criticando-o com a frase “Você gosta de aparecer”... o Lama, sorrindo, responder-lhe “Não é não”... na sequencia, brincar com a garotinha, seguir na conversa conosco, seguir no trajeto, seguir... e seguir mestre, meu Lama.
Mas o episódio mais elucidativo, para mim, do caminho (cortante, e humanamente solitário) do mestre na prática do darma, também acontecido em Fortaleza, conto agora. Nossa pequena e iniciante sanga, aqui em casa mesmo, o Grupo de Estudos Budistas Karuna, já acontecia há uns meses, por isto, preparada a visita do Lama, providenciei convidá-lo a estar um pouco, meditar, conosco; na verdade, o Lama vinha para participar de uma cerimônia budista elaborada e seguia aqui conduzido pela sanga do Khadro Ling (com sede em Três Coroas, RS, a que já me referi) local, assim, foi-me solicitado que poupasse o Lama e que concentrássemos todas as atividades na sede da referida sanga, eu concordei imediatamente, se era para beneficiar meu professor, claro que sim! O que aconteceu foi diferente, no entanto, o Lama fez questão de sentar aqui na sala do apartamento, improvisada, informal, que servia ao Karuna, e preferiu sentar no chão mesmo, conosco, mas nunca o vi tão paramentado, formalmente paramentado, nunca; para a prática no Khadro Ling, ambiente formal, acho que vinha da praia, chegou de calça e camiseta, continuou na informalidade, iniciou-nos coletivamente, com um nome coletivo (Padma Rishi), seguiu assim... e foi lindo! E não comentou sobre isso, sem explicações, não disse uma palavra, ao menos, para justificar-se, mas para mim bastou, o ensinamento, e aqui também me calo. Foram momentos auspiciosos, eu também praticava numa sanga Zen, o Lama foi convidado ao nosso zendô (local onde se pratica o Zen), recepcionado pelo monge Flávio Jikishin, discípulo de mestre Tokuda, e logo depois, na cerimônia (budista tibetana) que ocorreu no mar, para depositar relíquias (objetos ou partes que tiveram contato com um grande mestre) no fundo do oceano, litoral de Fortaleza, estávamos todos no mesmo barco, as sangas todas, com o Lama, que seguiu, na prática do darma, timoneiro.
Ah, mas eu preciso contar um detalhe. Quando o Lama, no Karuna, preferiu sentar no chão conosco, ofereci-lhe meu tapetinho tibetano, um dos dois que trouxe de Dharamsala, Índia, o meu preferido, que usava, eu mesmo, para sentar, o Lama aceitou e, quando estava para ir-se, dizendo-lhe que queria presenteá-lo, terminei por oferecê-lo, ele também aceitou... ele aceitou! Já no hall do elevador, vendo meus olhos no tapetinho, assim, assim... sorriu, riu mesmo, e disse, segurando firme o tapetinho embaixo do braço, para quem o acompanhava: “Vamos logo, antes que o Silvio se arrependa e peça o tapetinho de volta”.
Gate Gate.
continua...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Com Darma e Com Afeto – parte IV



Na penúltima vez em que o Lama esteve aqui, em Fortaleza, CE, fui convidado a fazer sua apresentação na primeira palestra de sua programação na cidade. Não estava num dia, mesmo num período, bom e, aliado a isto, e principalmente, equivoquei-me, destes equívocos que fazem parte da ignorância, avydia, envolvi-me com a burocracia do ego e avaliei, e numa fração fria de segundo, e por mim e, maior equívoco ainda, por meu Lama, que não seria “elevado” apresentar meu professor por experiências, formações, graduações, títulos, iniciações, organizações, que ele seria o próprio darma e apresentar-se-ia por eles, os ensinamentos que transmitiria, e seria o bastante e o mais “espiritual”. “Toda vez que nos pomos a fazer avaliações, decidindo se devemos ou não fazer isto ou aquilo, já teremos associado nossa prática ou nosso conhecimento a categorias contrapostas umas às outras, e isso é materialismo espiritual”, ensina Chögyam Trungpa, em “Além do Materialismo Espiritual”, ainda: “É importante notar que o aspecto principal de qualquer prática espiritual é deixar para trás a burocracia do ego, isto é, deixar para trás o constante desejo do ego de adquirir uma versão mais elevada, mais espiritual, mais transcendental do conhecimento, da religião, da virtude, do julgamento, do conforto ou de qualquer particularidade que um determinado ego esteja procurando”.

Alfredo Aveline foi professor, por 25 anos, no Departamento de Física e no Curso de Filosofia (introdução da física para filósofos), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde estudou e fez mestrado. Manteve, durante esse tempo, participação ativa nos movimentos ecológico e popular, dedicando-se especialmente ao estudo de energias e tecnologias alternativas, bem como, das alternativas comunitárias. Chegamos no ponto de contar, acerca da minha relação conflituosa com o Lama, o, mais um, fato exemplar sobre isto. O Lama talvez não se lembre, também, passaram-se muitos anos, aconteceu em Fortaleza mesmo, aqui, depois de um passeio, nós dois, de bicicleta, quando o deixei na casa onde estava hospedado e lhe disse que queria, um dia, ouvi-lo sobre a sua fase bicho-grilo. O Lama respondeu-me, firme e sisudo: “Eu nunca me envolvi com drogas!”. Eu tentei explicar que aqui, no lugar onde moro, para mim, pelo menos, e foi neste sentido que usei, bicho-grilo... bom, pareceu-me, no momento, que o Lama não estava interessado na explicação, parei, calei-me (risos), explico agora: bicho-grilo, ainda que tenha sido, eventualmente, o termo, associado ao uso da maconha, é quem vive um estilo de vida informal, que não segue padrões “normais” de consumo e comportamento, que gosta de paz e amor, na década de 60 chamado de hippie, os hippies da contracultura, sucedidos pelos “alternativos”, que viveram experiências comunitárias, experiência que o professor universitário Alfredo Aveline viveu no final dos anos 70, começo dos 80. Bom, ainda gostaria que o Lama me contasse sobre este período, quando, motivado por uma experiência de vida auto-sustentável em meio à natureza, onde pudesse testar e testemunhar o uso de tecnologias alternativas, aprofundar a prática do yoga e pesquisar questões da física quântica, teoria que via (e continua vendo) afim do pensamento budista, experimento que atraiu e abrigou muitos idealistas, tornou-se ponto de convergência de jovens, fundou a comunidade alternativa de Rodeio Bonito, na encosta do Planalto, um lugar montanhoso no Rio Grande do Sul, entre os municípios de Taquara e Três Coroas, no Vale do Rio Paranhana, terreno que depois doou para construção do Khadro Ling, já referido, pelo Lama Chagdud Rimpoche.  
Na minha ingenuidade incurável, mas cada vez menos alienada (risos), permaneço, desde adolescente, um romântico idealista, experiências de vida alternativa sempre me fascinaram, ainda que hoje não seja exatamente assim, continuam sendo vistas, por mim, como sonhos comunitários possíveis, mas guardados o estado evolutivo humano atual, a realidade pragmática do sistema dominante (de corações e mentes), a época de degenerescência (do samsara, da roda da vida) que vivemos, condições que terminaram por minar as várias experiências comunitárias que fizeram época no Brasil, no mundo. Há uns cinco anos estou envolvido num projeto que tenta aproximar-se disso, numa ação de quem já participou de política (ecológica) e hoje prefere a micropolítica, o Moksa Yby (Moksa, do sânscrito, significa liberação, Yby, do tupi, terra, algo como Terra da Liberdade, portanto), mas isto é outro assunto, voltemos à biografia do meu querido professor.
O seu primeiro contato com o budismo já havia ocorrido na década de 70, através de leituras e de amigos praticantes, mas foi no retorno, depois da experiência comunitária, à universidade que o aceitou. Em 1982 a conexão com o budismo já estava estabelecida. Seguiu na tradição do Zen, ao mesmo tempo em que estudava os textos tradicionais (sutras) e também os ensinamentos de outras correntes budistas e não-budistas, tendo recebido treinamento de professores de várias tradições, viajado à Ásia em muitas ocasiões. Fundou, em 1986, em Viamão, RS, a 25 Km de Porto Alegre, o Centro de Estudos Budistas, ao mesmo tempo em que se tornou um dos co-editores da revista Bodisatva. A transição para o budismo tibetano começou em 1993, quando Chagdud esteve em Porto Alegre pela primeira vez. Pouco depois recebeu de seu mestre os votos de refúgio e o nome de Padma Samten. Nesse período contribuiu com um esforço enorme para trazer grandes mestres para o Brasil, incluindo Sua Santidade o Dalai Lama. Em 14 de dezembro de 1996, no Khadro Ling, em Três Coroas, foi ordenado lama pelo Rimpoche. O antigo CEB tornou-se o Centro de Estudos Budistas Bodisatva. Hoje exerce suas atividades em inúmeras cidades e locais por todo o Brasil, com CEBB estabelecidos no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná.
Lama Samten publicou  Jóia dos Desejos, Meditando a Vida, O Lama e o Economista, Relações & Conflitos e Mandala do Lótus, livros que são referências de estudo para alunos e interessados no conhecimento de vinte e seis séculos ensinado pelo Buda e transmitido pela mente viva do Buda, incessantemente presente, através dos mestres, do meu mestre.
Gate Gate.
continua...